Desporto

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Jaime Neves, o último guerreiro do império (2)


Jaime Alberto Gonçalves das Neves, faz o seu batismo de fogo em Dezembro de 1962 em Úcua-Dange, no norte de Angola, onde permanece até Setembro de 1964, como oficial de reabastecimentos do Batalhão 38, mais tarde como comandante da Companhia de Caçadores Especiais 365 - CCE365 -de que fora instrutor em Chaves. Depara-se com vestígios dos horrores da revolta negra de 1961 e da, ainda mais brutal, resposta das tropas portuguesas, matando, fuzilando a eito.

      Voluntaria-se para comandar a CCE365 em resposta ao pedido dos respetivos soldados insatisfeitos com os formalismos do seu comandante.  A CCCE365 circula pelas luxuriantes florestas do norte de Angola, por Zalala, Zemba, Quibaxe, Muchaluando (próximo de Nambuangongo), Piri, Namaúa e Quicabo. Mal armada - com a FN cujo cano incha após os primeiros tiros -, a CCE365 é flagelada em múltiplas ocasiões, destacando-se Neves pela presença afetiva mas firme e competência tática; um conforto para os soldados que que vêm reduzir as baixas para um morto e vários feridos num acidente de viação. Numa destas ocasiões foi abatido um avião e morre o filho do Treinador do Benfica Szabo quando se encontrava ao serviço de uma companhia de cavalaria. Mantêm um distanciamento respeitoso em relação aos pretos, defende-os contra os abusos dos colonos e presta-lhes assistência médica através do médico da companhia, Agualusa. Trata os casos disciplinares facultando ao faltoso optar entre “o papel selado” e o murro nos queixos, sendo este último o castigo “voluntariamente” escolhido pelo “gebo” ou “coirão”.  Recebe os primeiros louvores oficiais por desempenho “exemplar” em combate.
      Na fascinante Luanda, desataviada dos preconceitos sociais e sexuais, Jaime Neves,  ciente da volatilidade  existencial de um guerreiro, dá livre curso à sua exuberante faceta boémia semeando “penache”, em traje de caqui “à colonial”, lenço vermelho, óculos Ray-ban e jeep, frequentando tudo que “cheire” a fêmea, cansado das “sarapitolas” do mato; o bairro Marçal, o Bairro Operário e os abundantes bares de “meninas”.
      Regressado à Metrópole apresenta-se no Regimento de Artilharia de Queluz em Janeiro de 1965 onde se inicia a sua saga nos Comandos, cujo curso, há-de tirar no exigente Centro de Instrução de Comandos de Luanda - CIC - no qual só cerca de um terço dos candidatos tem sucesso. Depara-se com situação caricata a propósito do Eusébio que lá presta serviço militar; com estatuto especial, o popular jogador do Benfica é alvo da idolatria dos soldados que fazem fila para ver as suas botas e o seu potente remate. Perante os protestos dos seus camaradas pelo atraso no pagamento dos quinhentos escudos do subsídio de fardamento, Neves, benfiquista e “eusebista”, dirige-se ao Comandante do Regimento na presença do respetivo primeiro-Sargento e grita-lhes: - Onde está o dinheiro, caralho?! Mas isto trata-se da guerra ou de apoiar o Eusébio?! Os futuros subordinados de Neves percebem logo ali que estavam em presença de um chefe a sério.
      No Vera Cruz regressa a Luanda, a caminho do curso de Comandos, com mais de dois mil militares, passando as noites no jogo do póquer com os seus camaradas oficiais e apresentando-se diariamente às sete horas para ministrar aos seus homens dura sessão de ginástica matinal. O CIC fica nas proximidades de Luanda na antiga chitaca do Sr Sousa e nele se ministra a duríssima instrução de Comandos, quer no plano físico quer no mental, e se adquire um forte sentido de corpo. Stanley Kubrick, nos primeiros quinze minutos do seu filme “Full Metal Jacket” dá uma ideia parcial de um curso do género. Dificultar a instrução para facilitar o combate é a ideia geral e nas provas que ocorrem durante cerca de três meses, constam como pontos mais altos a Prova de Choque e a Semana Maluca. Inspirado na Legião Estrangeira, nos Cursos de Cristandade e nos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, mentaliza o instruendo da justiça da morte quando na defesa da Vida e da Liberdade. Assimilando o marialvismo os instruendos tornam-se fãs de toiros e fados, consideram o amor um desejo de compaixão e a dor um instrumento de fortalecimento. Ginástica de Aplicação Militar ou “Ginástica Até à Morte”, formaturas de ferro, crosses, cambalhotas nas fossas de lama, cai levanta, quedas na máscara, passo fantasma, milhares de tiros instintivo e de precisão com bala real, exercícios de explosões de trotil, granadas e minas e muitos outros exercícios resultam nalgumas fraturas, desidratações e, de vez em quando, um morto. Hino Nacional, a música de Richard Anthony, de Richard Strauss, o tema de Zaratustra de Richard Wagner, o Fado do 31 e o Portugal Campino fazem parte do cardápio de “fortalecimento” mental dos futuros Comandos que culmina com o famoso grito de combate “Mama Sumé” com que, mortíferos, investem de peito aberto sobre o inimigo. Tudo superou Jaime Neves, sem queixas, incluindo os castigos, apesar de mais velho - cerca de seis anos - que os restantes camaradas, dando o exemplo aos seus futuros subordinados e aos camaradas da Academia, que lhe atribuem a alcunha, a 2ª, de “Tigre”.
      Nas folgas, na “cidade do pecado alegre” os martirizados Comandos dão livre curso aos instintos, comprovando Neves poder ter algo de verdadeiro a ideia de que o Império Português pode ter sido alcançado “pas avec l’épée mais avec le pénis”, o exato oposto do Império Britânico “no sex please, we are british”. 
Por AB
Sintetizado de "Jaime Neves, Homem de Guerra e Boémio" da autoria de Rui Azevedo Teixeira, editado pela Bertrand
 
(Continua)